Os Três Concílios Budistas 

De acordo tanto com a tradição Mahayana quanto com a não Mahayana, desde o seu primeiro sermão público sobre as quatro nobres verdades em Varanasi – sete dias após sua iluminação – até o seu nirvana final em Kusinagara, Buddha viajou por quarenta anos pela Índia central e deu ensinamentos em numerosos lugares a incontáveis discípulos, de acordo com suas necessidades e predisposições mentais. Posteriormente, esses discursos foram compilados no Tripitaka. Por exemplo, durante o verão (do ano) em que Buddha alcançou o nirvana final, realizou-se o primeiro concílio budista, organizado pelo monge-sênior Mahakasyapa, em Rajagrha (o atual Rajgir[1]), na caverna de Saptaparna. Naquele concílio, cada um dos três compiladores abriu o seu discurso com a frase «Uma vez assim ouvi» e terminou com a declaração «Todos ali reunidos elogiaram aquilo que o Abençoado havia ensinado». Mahakasyapa recitou e compilou o cesto do Abhidharma; o arhat Upali compilou o cesto do Vinaya (disciplina); e o arhat Ananda compilou o cesto do Sutra. Assim teve início o processo de preservação dos cestos das escrituras que são parte dos ensinamentos comuns de Buddha.

Cerca de cem anos depois, realizou-se um segundo concílio budista. As escolas budistas geralmente concordam com a modalidade utilizada na realização desse segundo concílio, e há um relato sobre o mesmo nos textos do Vinaya.

Quanto ao terceiro concílio budista e quaisquer concílios adicionais, as escrituras não os mencionam explicitamente, e sobre esta questão há algumas divergências de opinião entre as escolas budistas. Segundo a escola Sarvastivada, por exemplo, um concílio budista realizou-se durante o reinado do rei Kaniska, no Kashmir, no monastério de Kundalavana. Diz-se que deste concílio participaram quinhentos arhats, inclusive o ancião Purnika; quinhentos bodhisattvas juntamente com os mestres Vasumitra e Asvaghosa; e mil e quinhentos panditas de grande erudição.  Segundo o relato, nesse concílio foram formalmente reconhecidas todas as dezoito escolas como apresentadoras dos ensinamentos autênticos de Buddha, e todas as disputas entre essas escolas foram resolvidas de acordo com o Dharma. Alguns estudiosos posteriores contestam a presença de anciãos de todas as dezoito escolas nesse concílio. De qualquer forma, diz-se que nesse concílio os discursos do Tripitaka que ainda não haviam sido registrados por escrito foram grafados em placas de cobre.[2]  É dito também que O Grande Tratado sobre a Diferenciação (Mahavibhasa) foi composto ou compilado como resultado desse concílio. Alguns estudiosos modernos sugerem que o monastério de Kundalavana poderia localizar-se no atual distrito de Kangra, no norte da Índia.

Segundo a tradição Theravada, o terceiro concílio budista realizou-se 218 anos após o nirvana final de Buddha, durante o décimo sétimo ano do reinado de Ashoka (por volta de 250 a.C.). Esse ocorreu em Pataliputra (Patna) sob a liderança de Tissa Moggaliputta e contou com a participação de mil anciãos. É dito que, num período de nove meses foram foram compilados os discursos do Tripitaka. O relato dos participantes parece indicar que apenas as escrituras da escola Theravada foram compiladas nesse concílio. A tradição Theravada também sustenta o ponto de vista de que o Tripitaka em Pali, bem como seus comentários, foram escritos pela primeira vez no ano 27 AEC, durante o reinado do rei cingalês Vattagamani.

Quanto às escrituras que são exclusivas da tradição Mahayana, estas não foram compiladas durante os concílios budistas acima mencionados. Entende-se que tenham sido compiladas por Manjushri, Avalokiteshvara, Vajrapani etc., em vários locais perceptíveis apenas pelas mentes dos discípulos com visão pura. Sobre como foram compiladas as escrituras tântricas, os próprios tantras contêm diversas explicações a respeito. A escola não Mahayana Sravaka aceita o sermão de Buddha sobre as quatro nobres verdades como o único giro da roda do Dharma e reconhece todos os outros discursos de Buddha como elaborações subsequentes daquele sermão. Por outro lado, as escolas Mahayana aceitam os três giros da roda do Dharma. O segundo giro, que se refere à ausência de características, ocorreu no Pico dos Abutres, em Rajagrha, enquanto o terceiro, referente à clara diferenciação, ocorreu em Vaisali, em Bihar. Após a morte de Buddha, por aproximadamente quatrocentos anos antes do aparecimento do glorioso Nagarjuna, os sutras do Mahayana permaneceram fora do alcance da percepção ordinária humana. Nagarjuna fez florescer amplamente muitos desses sutras Mahayana e, desse modo, abriu o caminho da tradição Mahayana e da escola filosófica Madhyamaka. Compondo inúmeros tratados, Nagarjuna elucidou os estágios da verdade da vaziedade – que é o tema explícito dos Sutras da Perfeição da Sabedoria Transcendente.

Naquela época, a maior parte das escolas Sravaka não aceitava os sutras Mahayana como escrituras autênticas ensinadas por Buddha e, assim, esses sutras permaneceram como objeto de debate por algum tempo. Consequentemente, o próprio Nagarjuna e, mais tarde, Maitreya e Bhavaviveka apresentaram numerosos argumentos lógicos para demonstrar que os sutras Mahayana eram ensinamentos autênticos de Buddha. Mesmo na época de Shantideva (oitavo século EC), ainda parecia haver necessidade de defender a autenticidade dos Sutras Mahayana.[3]

Asanga iniciou a escola Só Mente (Cittamatra) e divulgou os Cinco Tratados de Maitreya. Compôs também um vasto número de textos, como a coletânea sobre os Estágios do Bodhisattva (Bodhisattvabhumi), na qual elucidou os estágios do caminho. Esses representam o tema implícito dos Sutras da Perfeição da Sabedoria Transcendente.

Com o passar do tempo, os sutras Mahayana vieram a ser estabelecidos como ensinamentos autênticos do próprio Buddha, e a tradição Mahayana, inclusive os ensinamentos do Vajrayana, floresceram consideravelmente na Índia central, bem como em várias outras regiões do continente indiano. Não só isso, mas os ensinamentos de todos os três veículos espalharam-se por numerosos lugares na Ásia Central, inclusive a China. Mesmo nos países em que atualmente floresce a tradição Theravada, como Burma, Tailândia e Sri Lanka, parece haver numerosos sinais indicando que, em seus estágios iniciais, os ensinamentos Mahayana ali floresceram.

Por Tenzin Gyatso, o XIV Dalai Lama

 

Extraído do livro  Science And Philosophy In The Indian Buddhist Classics que sera publicado em portugês em breve.


NOTAS:

[1] Rajgir, também conhecida como Rajagarra, é uma cidade do estado de Bihar, na Índia. A cidade de Rajgir (antes Rajagria, Rajagriha ou Rajagṛha; em pali: Rajagaha) foi a primeira capital do reino de Mágada, um estado que mais tarde se tornaria o Império Máuria. https://pt.wikipedia.org/wiki/Rajgir

[2] A maior parte das fontes históricas tibetanas sobre o budismo indiano contém relatos confusos e incoerentes sobre este concílio budista. No Butön, por exemplo, lista duas diferentes versões sobre a identidade do terceiro concílio. Em uma, o terceiro concílio teve lugar 137 anos após o nirvana final de Buddha, em Pataliputra, e foi supervisionado por Vastiputra, o ancião. Na segunda versão é dito que o terceiro concílio ocorreu 300 anos após o nirvana final de Buddha. Esse segundo relato citado aqui apresenta o ponto de vista da Escola Sarvastivada. Considerando-se que a evidência arqueológica coloca Kaniska em meados do segundo século da EC, as fontes tibetanas que fornecem a data desse concílio são cronologicamente discordantes.

[3] Ver Engajando-se nos Atos do Bodhisattva (Bodhicharyavatara, Título em inglês: Engaging in the Bodhisattva’s Deeds) 9.40, em que, enquanto é afirmado que a realização da vaziedade é indispensável para o alcance da verdadeira liberação, Shantideva apresenta uma série de argumentos que comprovam a autenticidade dos ensinamentos Mahayana [Existe uma tradução provisória de fevereiro de 2017 do Centro Budista Tibetano Kagyü Pende Gyamtso intitulada “Guia da Conduta do Bodhisattva.”]

Deixe um comentário