ENGAJANDO-SE NOS ATOS DO BODHISATTVA 
(Engaging in the Bodhisattva Deeds)
བྱང་ཆུབ་སེམས་དཔའི་སྤྱོད་པ་ལ་འཇུག་པ།
Bodhicharyavatara
de Shantideva
Cap. 6
PACIÊNCIA
(A leitura desse Cap. é recomendada pelo Dalai Lama)

1
Boas obras reunidas ao longo de mil eras,
Tais como atos de generosidade
Ou oferendas aos bem-aventurados:
Um único lampejo de raiva as destrói.

2
Não há mal algum que se iguale à raiva,
Nem austeridade que se compare à paciência.
Imbua-se, portanto, de paciência:
De vários modos, insistentemente.

3
Aqueles que vivem atormentados pela dor da raiva
Jamais conhecerão paz mental.
Alheios serão de todo prazer:
Não dormirão nem se sentirão seguros.

4
Mesmo aqueles que dependem de seus senhores
Para obter honrarias e bens
Se revoltarão e matarão
Um senhor repleto de fúria e ódio.

5
Ele faz sofrer amigos e parentes
E não é servido por aqueles que sua generosidade outrora atraiu,
Não há homem raivoso
Que viva em paz.

6
Todos esses males são causados pela cólera,
Essa inimiga que semeia a nossa dor.
Mas aqueles que pegam e esmagam a sua raiva
Encontram alegria nesta vida e em vidas futuras.

7
Receber o que eu não quero
E tudo o que obstrui o meu desejo:
No descontentamento a minha raiva encontra combustível;
Daí a raiva brota, oprimindo-me.

8
Portanto, destruirei por completo
O sustento desta minha inimiga;
Minha adversária, cuja única intenção é
Causar-me dano e sofrimento.

9
Aconteça o que acontecer, nunca prejudicarei
O ânimo e a alegria da minha mente.
O abatimento nunca traz o que eu quero;
Minha virtude fica por ele distorcida e corrompida.

10
Se há remédio para o problema,
Que motivo há para o desânimo?
Mas, se não há remédio algum,
De que adianta você ficar taciturno?

11
Dor, humilhação, insultos ou repreensão:
Não queremos essas coisas
Nem para nós mesmos, nem para aqueles que amamos.
Para aqueles de quem não gostamos, é bem o contrário!

12
A causa da felicidade é rara,
E muitas são as sementes do sofrimento!
Mas, se eu não experimentar a dor, nunca ansiarei pela liberdade;
Portanto, ó minha mente, seja firme!

13
O povo Karna e outros devotos da Deusa,75
Suportam austeridades sem sentido,
Como queimaduras e lacerações.
Por que fico tão acovardado no caminho da liberdade?

14
Não há nada que não se tome mais leve
Com o hábito e a familiaridade.
Aprendendo a tolerar pequenos contratempos,
Vou me treinar para suportar grandes adversidades.

15
Por que não vejo dessa forma irritações corriqueiras como
Mordidas e picadas de cobras e mosquitos,
Sensações de fome e sede
E dolorosas erupções na minha pele?

16
Calor e frio, vento e chuva,
Doença, prisão e surras:
Não vou me afligir com essas coisas.
Isso apenas agravaria minhas dificuldades.

17
Há aqueles cuja valentia redobra
Diante da visão do próprio sangue,
Ao passo que outros perdem toda força e desmaiam
Ao ver o sangue de uma outra pessoa!

18
Isso resulta de como a mente se posiciona:
Na firmeza ou na covardia.
Portanto, farei pouco de todo ferimento,
E as adversidades vou desconsiderar!

19
Quando as desventuras caem sobre os sábios,
A mente deles permanece serena e imperturbável.
Pois, na luta contra as emoções negativas,
Muitas são as adversidades, como em toda batalha.

20
Desdenhar de toda dor
E vencer inimigos como o ódio
São os feitos de um herói conquistador.
O resto é matar o que já está morto!

21
O sofrimento também tem o seu valor.
Por meio da dor e da tristeza, o orgulho é expulso,
E a piedade é sentida por aqueles que perambulam pelo samsara;
O mal é evitado; o bem apraz.

22
Não me zango com minha bílis e os demais humores:
Fonte fértil de dor e sofrimento!
Então por que hei de me irritar com meus semelhantes,
Vítimas que são, também, das mesmas circunstâncias?

23
Pois, embora não sejam buscados nem desejados,
Esses males nos afligem ainda assim.
Do mesmo modo, embora não sejam queridas nem procuradas,
As negatividades aparecem insistentemente.

24
Sem nunca pensar “Agora vou me enraivecer”,
As pessoas são tomadas pelo impulso da raiva.
A irritação aparece do mesmo modo,
Embora nunca planeje ser experimentada!

25
Toda gama de más ações,
Toda variedade de danos,
São causados pela força das circunstâncias.
Nenhum é independente, nenhum é autônomo.

26
As condições, uma vez reunidas,
Não têm a intenção de então provocar determinado resultado.
E aquilo que foi produzido não pensa
Ter sido causado por essas condições.

27
Aquilo que é denominado a substância primordial e
Aquilo que foi rotulado de “eu”
Não nascem propositadamente
E não pensam: “É assim que vou aparecer”.

28
Aquilo que não é nascido não existe;
Então o que poderia querer nascer?
E, estando permanentemente atraído por seu objeto,
Nunca poderia deixar de o estar.

29
De fato! Esse “eu”, se permanente,
Certamente é inerte, como o próprio espaço.
E, caso se deparasse com outros fatores,
Como poderiam eles afetá-lo, já que é imutável?

30
Se, quando condições atuam sobre ele, ele permanece inalterado, como antes,
Que influência essas condições tiveram?
É dito que elas são agentes do “eu”,
Mas que conexão poderia haver entre eles?

31
Todas as coisas, então, dependem de outras coisas;
E estas também dependem; elas não são independentes.
Sabendo isso, deixamos de nos aborrecer com objetos
Que se assemelham a aparições mágicas.

32
“A resistência”, você poderia dizer, “é descabida,
Pois quem se oporia a quê?”
A corrente do sofrimento é rompida pela paciência;
Não há nada de descabido na nossa asserção!

33
Dessa forma, ao ver o comportamento inadequado
De amigos ou inimigos,
Fique sereno e recorde-se
De que tudo surge a partir de condições.

34
Se as coisas acontecessem para os seres
De acordo com as suas vontades,
Nenhum sofrimento jamais viria a ter com eles,
Pois não há ninguém que deseje qualquer tipo de dor.

35
No entanto, sem cuidado nem atenção,
Eles se ferem em espinheiros
E, ávidos na perseguição de esposas e bens materiais,
Privam-se de alimento.

36
Alguns se enforcam ou pulam de um precipício,
Tomam veneno ou consomem alimentos insalubres,
Ou, devido à má conduta,
Provocam a própria destruição.

37
Pois, quando as aflições mentais se apoderam deles,
Eles se matam, destruindo quem lhes é tão caro.
Como então deixariam de machucar
O corpo de outros seres?

38
Embora raramente sintamos compaixão
Por aqueles que, devido às aflições mentais,
Chegam a causar sua própria desgraça,
De que serve a raiva?

39
Se há aqueles que, como crianças desgovernadas,
São, por natureza, propensos a ferir os outros,
Não há por que nos enraivecermos;
Seria como nos ressentirmos do fogo por ser quente.

40
E, se suas falhas são passageiras e contingentes,
Se os seres vivos são, por natureza, plácidos,
É igualmente descabido abrigar ressentimento contra eles:
Como o seria nos zangarmos com o céu por estar repleto de fumaça!

41
Embora, na verdade, sejam as varas que me ferem,
Minha raiva volta-se contra aqueles que as empunham e me golpeiam.
Mas essas pessoas, por sua vez, são impelidas pelo ódio;
Portanto, é com o ódio delas que devo me indispor.

42
Da mesma forma, no passado,
Fui eu quem causei mal aos seres.
Portanto, é justo que o sofrimento
Venha a mim, o torturador.

43
As armas deles e meu corpo:
Ambos são causas do meu tormento!
Eles brandiram suas armas e eu, meu corpo.
Quem então é mais merecedor da minha fúria?

44
Este corpo: uma ferida purulenta em forma de corpo humano;
Ao menor toque, não suporta a dor!
Sou eu quem me agarro a ele com cego apego;
Com quem devo me irritar, quando acontece a dor?

45
Nós, que somos como crianças,
Esquivamo-nos da dor, mas adoramos as suas causas.
Machucamos a nós mesmos por meio de nossas faltas!
Por que deveriam os outros ser o objeto da nossa fúria?

46
Com quem, na realidade, devo me enraivecer?
Esta dor é toda ela criação minha:
Assim como o são os guardas dos infernos
E as florestas de árvores cujas folhas são navalhas!79

47
Aqueles que me ferem levantam-se contra mim:
Meu carma os convocou.
Mas se, por meio disso, são lançados nos infernos,
Não sou eu a causa da ruína deles?

48
Por causa deles e através da minha paciência,
Minhas muitas faltas são lavadas e purificadas.
Mas são eles que, graças a mim,
Terão que suportar as prolongadas agonias dos infernos.

49
Portanto, eu é quem sou o torturador deles!
Portanto, eles são quem trazem benefícios a mim!
Assim, com que obstinação, mente daninha,
Você se enraivecerá com seus inimigos?

50
Pois, se a minha mente souber ser paciente,
Evitarei os tormentos dos infernos.
Mas, embora eu possa vir a me salvar,
O que será de meus inimigos? Que destino estará a eles reservado?

51
Se eu pagar o mal deles com o mal,
Certamente com isso não serão salvos;
Minha conduta, por sua vez, será arruinada;
A austeridade da paciência, reduzida a nada.

52
A mente é desprovida de corpo;
Ninguém pode destruí-la.
Devido ao apego da mente ao corpo,
Este corpo é oprimido pela dor.

53
Menosprezo e palavras hostis,
E comentários que não me agrada ouvir:
Essas coisas não ferem o meu corpo.
Que motivo tem você, ó mente, para seu ressentimento?

54
A animosidade que os outros demonstram para comigo,
Já que — tanto nesta como em vidas futuras —
Não pode, de fato, me devorar,
Por que eu deveria ter tanta aversão a ela?

55
Talvez eu me afaste dela, porque me
Impede de conseguir o que eu quero.
Mas todos os meus bens deixarei para trás,
Ao passo que minhas faltas me farão constante companhia.

56
Muito melhor eu morrer hoje
Do que viver uma vida longa e danosa.
Por maior que seja a duração dos meus dias,
A dor da morte será a mesma.

57
Um homem sonha que vive cem anos de felicidade,
Mas depois acorda.
Outro sonha com um só instante de felicidade,
Mas depois, igualmente, acorda.

58
E, quando eles acordam, a felicidade de ambos
Termina para nunca mais voltar.
Do mesmo modo, quando chega a hora da morte,
A nossa vida se acaba, quer tenha sido breve ou longa.

59
Embora sejamos ricos, tendo acumulado muitos bens materiais
E desfrutado da riqueza por muitos anos,
Como um homem saqueado e despojado por ladrões,
Partimos nus, com as mãos vazias.

60
Talvez possamos alegar que, graças à riqueza, vivemos
E, vivendo, acumulamos mérito e dissipamos o mal.
Porém, se formos agressivos por uma questão de ganho,
Não serão nossos ganhos maléficos e todo o mérito perdido?

61
E se a razão de nosso viver
É assim desperdiçada e destruída,
De que serve ter uma vida assim,
Cuja única consequência é o mal?

62
Se, quando os outros nos caluniam,
Afirmamos que nossa raiva se deve ao fato de eles prejudicarem os outros,
Por que então não nos incomodamos com a calúnia deles,
Quando é dirigida a uma outra pessoa?

63
Se toleramos essa malquerença,
Ponderando que ela se deve a outros fatores,
Por que nos impacientamos quando eles nos caluniam?
As emoções aflitivas, afinal de contas, são as causadoras disso tudo.

64
Mesmo aqueles que vilipendiam e põem entraves
À Doutrina Sagrada, imagens e estupas
Não constituem objeto justo da nossa raiva.
Os próprios Buddhas não são tocados por esses atos.

65
E, mesmo que nossos mestres, parentes e amigos
Sejam agora agredidos por eles,
Tudo resulta dos fatores já explanados.
Devemos entender isso e refrear nossa cólera.

66
Os seres são feridos, igualmente,
Por coisas inanimadas e por seres vivos;
Então por que abrigar raiva apenas contra estes últimos?
É melhor simplesmente tolerarmos os danos.

67
Alguns causam o mal por ignorância,
Outros respondem com raiva, por serem ignorantes.
Qual deles é isento de culpa em sua conduta?
A quem cabe o erro?

68
Devo, antes, perguntar: “Que ato praticaram no passado
Que faz com que agora sofram nas mãos dos outros?”
Já que tudo depende do carma,
Por que devo ter raiva de tais coisas?

69
Isso eu enxergo e, portanto, aconteça o que acontecer,
Vou me ater ao caminho virtuoso,
Procurando encorajar no coração de todos
Uma atitude de amor recíproco.

70
Pois, quando um prédio está se incendiando
E as chamas saltam de uma morada para outra,
A conduta sábia é apanhar e jogar fora
A palha e tudo o mais que alastra o fogo.

71
Temerosos de que nosso mérito venha a ser todo consumido,
Devemos imediatamente atirar longe
Os apegos da mente:
Estopim das chamas incandescentes do ódio.

72
Não é afortunado aquele que, embora condenado à morte,
É libertado, após ter a mão cortada como resgate de sua vida?
Não sou eu afortunado se agora, para escapar do inferno,
Sofro apenas os infortúnios dos seres humanos?

73
E mesmo estas, as dores que sinto no presente,
Estão além do que minhas forças podem aguentar;
Por que não me livro da raiva,
Causa de suplício futuro nos reinos infernais?

74
Na tentativa de conquistar tudo que desejo,
Mil vezes fui lançado
Em meio às torturas dos infernos.
Sem nada conseguir, nem para mim nem para os outros.

75
As agruras do presente nada são em comparação àquelas outras,
Das quais, no entanto, grandes benefícios podem advir.
Como deixar de me regozijar
Com as atribulações que debelam as dores dos seres andarilhos?

76
Quando outros se deleitam
Em louvar aqueles que são dotados de talento,
Por que, ó mente, você não encontra
Alegria em louvá-los também?

77
O prazer que daí advém
Dá causa a uma felicidade imaculada.
Ele nos é recomendado por todos aqueles que são sagrados
E é o meio perfeito de conquistarmos os outros.

78
“Mas são eles que ficarão com a felicidade”, você diz.
Se essa então é uma alegria da qual você se ressentiria,
Desista de pagar salários e retribuir favores:
Você é que sairá perdendo, nesta vida e na próxima!

79
Quando elogios a respeito de suas qualidades são derramados,
Você faz questão de que os outros venham a se regozijar com elas.
Porém, quando as qualidades dos outros são enaltecidas,
Você não tende a se alegrar.

80
Você, que quer a felicidade de todos os seres,
Formulou o desejo de se iluminar para benefício deles.
Então por que os outros o aborrecem
Quando encontram um pouco de prazer para si mesmos?

81
Se você clama desejar que os seres se iluminem
E sejam venerados pelos três mundos,
Por que, mas por que, você se atormenta
Quando favores banais lhes são dispensados?

82
Quando seus dependentes, que contam com você,
A quem você tem obrigação de prover,
Encontram meios próprios de sustento,
Você não vai com isso se alegrar? Você vai uma vez mais se zangar?

83
Se nem sequer isso você deseja para os seres,
Como é que você pode querer que tenham o estado búdico?
E como é que alguém pode ter bodhicitta
E se enfurecer quando o outro prospera?

84
Se uma outra pessoa recebe um presente
Ou se esse presente permanece na casa do benfeitor.,
Em nenhum dos casos ele será seu;
Então, se ele é dado ou retido, o que é que lhe importa?

85
Por que você joga fora todo o seu mérito, a fé dos outros
E todas as suas qualidades excelentes?
Diga-me, por que você não se desgosta de si mesmo
Por não cultivar as causas da riqueza?

86
Você não se arrepende
De todo o mal que praticou
E, além disso, deseja se equiparar
Aos que acumularam mérito!

87
Se a infelicidade cai sobre seu inimigo,
Por que isso deveria ser causa do seu regozijo?
O mero querer da sua mente
Não é, de fato, capaz de provocar dano a ele.

88
E, se seus desejos hostis viessem a causar mal aos outros,
Como poderia isso ser causa da sua felicidade?
“Ora, aí eu ficaria satisfeito!”: é isso o que você pensa?
Existe algo mais ruinoso do que isso?

89
Pego pelo terrível e afiado anzol
Jogado pelo pescador, minhas próprias negatividades,
Serei lançado nos caldeirões do abismo
E certamente fervido pelos guardas dos infernos!

90
Veneração, elogio e fama
Não servem para aumentar o mérito nem prolongar a vida;
Não proporcionam saúde, força,
Nem bem-estar para o corpo.

91
Se eu souber discernir o que é bom para mim,
Vou me perguntar que benefícios essas coisas podem me trazer.
Pois, se é diversão o que eu desejo,
É melhor eu me entregar ao álcool e às cartas!

92
Por conta de reputação,
Perdemos a vida e esbanjamos riquezas.
De que servem as palavras e a quem elas contentarão,
Quando estivermos mortos e sepultados?

93
As crianças não conseguem deixar de chorar,
Quando seus castelos de areia vêm abaixo.
Nossa mente é igual a elas,
Quando elogios e reputação começam a nos faltar.

94
Sons fugazes, desprovidos de intelecto,
Não podem nunca, eles próprios, intentar me elogiar.
“Mas é a alegria que evoco nos outros”, digo,
“É ela a causa de meu deleite.”

95
O que me importa se os outros se comprazam
Com alguma outra pessoa ou comigo mesmo?
O prazer deles é deles somente.
Não desfruto de nenhuma parcela desse prazer.

96
Se fico feliz com a alegria daqueles que se comprazem,
Então todas as pessoas deveriam ser uma fonte de alegria para mim.
Por que não me alegro com o prazer que os outros sentem
Devido ao benefício que criaram a terceiros?

97
A satisfação que sinto
Ao pensar “Estou sendo elogiado”
É inaceitável ao senso comum,
Não passa de uma palhaçada de uma criança tola.

98
Elogios e cumprimentos me perturbam,
Minando minha repulsa ao samsara.
Passo a cobiçar as qualidades dos outros,
E assim toda excelência se degenera.

99
Portanto, aqueles que ficam do meu lado
Para arruinar o meu bom nome e me colocar no meu devido lugar
Estão aí, seguramente, para me proteger contra
A ruína e a queda nos estados de tormento.

100
Pois sou uma pessoa que luta pela liberdade.
Não posso me deixar prender por riqueza e honrarias.
Como poderia ter raiva daqueles
Que trabalham para me soltar de minha prisão?

101
Eles, tal qual as próprias bênçãos do Buddha,
Barram meu caminho, determinado que estou
A mergulhar de cabeça no sofrimento.
Como poderia eu me enraivecer com eles?

102
Não deveríamos nos deixar irritar, dizendo:
“Eles são obstáculos às minhas boas ações”.
Pois não é a paciência a suprema austeridade,
E não deveria eu praticá-la?

103
Se eu deixar de praticar a paciência,
Tolhido pelas minhas próprias limitações,
Eu mesmo crio obstáculos
A acumulação de mérito, que se apresenta tão à mão.

104
Se uma coisa não surge quando uma outra está ausente,
E vem a surgir quando esse fator está presente,
Esse fator é, de fato, a causa.
Como se pode dizer que a causa é um obstáculo?

105
Os pedintes que aparecem no momento oportuno
Não constituem obstáculo à generosidade.
Não podemos dizer que aqueles que conferem os votos
Sejam obstáculos à ordenação!

106
Os pedintes neste mundo são muitos;
Assaltantes, comparativamente poucos.
Se eu não fizer o mal aos outros,
Outros não me prejudicarão.

107
Assim, como um tesouro encontrado em minha própria casa,
Que conquistei sem fadiga,
Meus inimigos ajudam o meu trabalho de bodisatva
E, portanto, deveriam ser para mim uma alegria.

108
Já que minha paciência brotou
Graças a eles,
A eles devo oferecer os primeiros frutos,
Pois foram eles a causa da minha paciência.

109
Entretanto, se eu disser que não cabe a meu inimigo nenhum elogio,
Visto que ele não teve intenção alguma de estimular minha paciência,
Por que eu reverencio o Darma sagrado,
Causa, sem dúvida, da minha realização?

110
“Esses inimigos conspiraram contra mim”, protesto eu,
“E, portanto, não devem receber nenhuma honra”.
Porém, se eles tivessem trabalhado para me ajudar, qual um médico,
Como poderia eu dar à luz a paciência?

111
Graças àqueles cuja mente é repleta de maldade,
Eu forjo a minha paciência.
Eles são assim a causa da paciência,
Dignos de veneração, como o Darma.

112
Assim o Sábio poderoso disse do campo de seres sencientes
Como do campo dos conquistadores.
Muitos que levaram a felicidade aos seres
Passaram além, tendo alcançado a perfeição.

113
Assim, o estado búdico depende
Dos seres sencientes e dos Buddhas, igualmente.
Que tipo de prática é essa então,
Que reverencia apenas os Buddhas, mas os seres sencientes não?

114
Eles se assemelham pelos frutos que produzem,
E não pelas qualidades mentais.
Nos seres comuns há também tal excelência
E, portanto, seres comuns e Buddhas são iguais!

115
Oferendas feitas àqueles com uma mente amorosa
Revelam a eminência dos seres vivos.
O mérito que advêm da fé em Buddha
Revela, por seu turno, a eminência de Buddha.

116
Embora nenhum deles seja igual
Aos Buddhas, que são oceanos de perfeição,
Por terem uma participação na obtenção da iluminação,
Os seres são semelhantes aos Buddhas.

117
No entanto, se de tal reunião de excelência suprema
Uma diminuta parte aparecesse em alguns seres,
A oferenda dos três mundos a eles
Seria irrisória.

118
Já que uma parcela do surgimento do supremo estado iluminado
Cabe aos seres comuns,
A virtude de apenas essa semelhança
Faz com que seja apropriado reverenciá-los.

119
Visto que os Buddhas são meus amigos leais e infalíveis,
Incomensuráveis são os benefícios que trazem a mim.
De que outro modo poderia eu retribuir a bondade deles,
Senão levando felicidade aos seres?

120
Ao ajudar os seres, retribuímos àqueles
Que se sacrificam por nós e mergulham no inferno do Tormento Último.
Portanto, ainda que os seres causem grande mal a mim,
Vou me empenhar para lhes trazer apenas benefícios.

121
Pois, se aqueles que são meus senhores,
Às vezes, não consideram nem o próprio corpo em proveito dos seres.
Por que devo eu, um tolo, me comportar com tanta presunção?
Por que não fazer de mim um servo dos outros seres?

122
Os Buddhas se deleitam com a alegria dos seres;
Eles padecem, lamentam, quando os seres sofrem.
Ao levar alegria aos seres, então eu também contento os Buddhas;
Ao feri-los, firo os Buddhas também.

123
Do mesmo modo que não há prazer sensorial
Que deleite a mente daquele que está com o corpo em chamas,
Não há como contentar os grandes Buddhas compassivos
Enquanto nós próprios formos a causa do sofrimento dos outros.

124
O mal que fiz aos seres
Entristece todos os Buddhas, em sua imensa compaixão.
Portanto, todas essas maldades confesso hoje,
Rogando a eles que sejam tolerantes com minhas ofensas.

125
E, para que eu possa deleitar o coração dos Buddhas,
De agora em diante, serei senhor de mim mesmo e serei servo do mundo.
E não revidarei, ainda que multidões pisem na minha cabeça ou me matem.
Que os guardiões do mundo com isso agora se rejubilem!

126

Os grandes senhores compassivos consideram como a si mesmos
Todos os seres: disso não há dúvida.
Aqueles que vejo como seres são Buddhas eles mesmos.
Como não os tratar com respeito?

127
Exatamente isso contentará o coração dos Buddhas
E assegurará o meu bem-estar, de modo perfeito.
Isso espantará as dores do mundo
E, portanto, será meu trabalho constante.

128
Imagine que o mandatário de um rei
Venha a ferir uma multidão de pessoas.
Aqueles que enxergam longe e com clareza
Não responderão com violência, ainda que o possam fazer.

129
Pois os mandatários, afinal de contas, não estão sós;
Estão respaldados no poder real.
Por essa razão, não devo desdenhar
Os seres fracos que me atormentam.

130
Seus aliados são os guardiões dos infernos
E também os Buddhas compassivos.
Portanto, agradarei todos os seres vivos,
Da mesma forma que os súditos apaziguam um rei enfurecido.

131
Entretanto, o padecer a ser experimentado nos infernos
Por quem causou sofrimento aos seres vivos:
Poderia esse padecer um dia ser desencadeado sobre mim
Por meio da cólera de tal rei?

132
E, mesmo que esse rei estivesse satisfeito,
Não poderia me dar a iluminação,
Pois esta somente é alcançada
Levando-se felicidade aos seres vivos.

133
O que dizer então do futuro estado búdico,
Forjado pelo ato de se levar felicidade aos seres sencientes,
Como posso eu deixar de enxergar que glória, fama e prazer,
Mesmo nesta vida, virão igualmente ter comigo?

134
Pois a paciência no samsara é a origem
de beleza, saúde e boa reputação.
Seu fruto é uma longevidade considerável.
Os prazeres imensos de um monarca universal.

 

Tradução do Padmakara translation grupo.
[Português de Portugal]

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