COMENTÁRIO SOBRE OS SETE PONTOS DO TREINAMENTO DA MENTE
por Gyalse Tokme Zangpo
༄༅། །རྒྱལ་བའི་སྲས་པོ་ཐོགས་མེད་བཟང་པོ་དཔལ་གྱིས་མཛད་པའི་བློ་སྦྱོང་དོན་བདུན་མ་བཞུགས་སོ། །
Homenagem ao grande Compassivo!
Puro nos três treinamentos e com a mestria da dupla bodhicitta,
Difundiste os ensinamentos do Sugata nas dez direções,
Como sendo o ornamento da coroa entre todos os detentores dos ensinamentos.
Incomparável guru, a seus pés eu me prostro em homenagem!
O caminho único percorrido pelos Buddhas dos três tempos e seus herdeiros,
Um precioso tesouro que é a fonte de todo benefício e alegria,
Eu o apresentarei aqui, em resposta às repetidas solicitações dos discípulos afortunados
E com a confiança nas palavras do Guru.
Aqueles que buscam alcançar o insuperável, completo e perfeito despertar devem fixar a mente na iluminação e então se esforçar no cultivo tanto da bodhicitta relativa quanto da última. Como disse o Ārya Nāgārjuna:
Se nós mesmos e todos os outros seres
Desejarmos alcançar a insuperável iluminação,
A base para isso é a bodhicitta,
A compaixão que se estende em todas as direções,
Estável como o rei das montanhas,
E a sabedoria que transcende a dualidade.[1]
Atiśa, o grande precioso e único senhor divino, aquele que recebeu as instruções sobre o cultivo da bodhicitta dos três principais mestres: o Mestre Dharmarakṣita, que cortou e doou sua própria carne e realizou a vaziedade puramente por meio do cultivo do amor e da compaixão; o Mestre Maitrīyogi, que foi capaz de tomar diretamente sobre si a dor dos outros; e o Mestre Suvarnadvīpa. Aqui, o que se segue é a tradição do Mestre Suvarnadvīpa.
Há muitas diferentes modos de apresentar essa instrução, mas a tradição de Geshe Chekawa segue sete pontos: 1) os ensinamentos preliminares das instruções de apoio; 2) a prática principal do treinamento na bodhicitta; 3) transformando a adversidade no caminho da iluminação; 4) aplicação da prática durante toda a vida; 5) a dimensão do treinamento da mente; 6) os compromissos do treinamento da mente; e 7) os preceitos do treinamento da mente.
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- OS PRELIMINARES
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O texto-raiz diz:
“Em primeiro lugar, treine nas práticas preliminares“.
Isso consiste em três contemplações: 1) sobre a dificuldade de encontrar as liberdades e vantagens; 2) sobre a morte e a impermanência; e 3) sobre as tribulações do saṃsāra.
- As liberdades e excelências.
Para o primeiro, contemplamos o seguinte: para obter esse apoio para praticar o Dharma, um corpo humano com suas liberdades e excelências, devemos ter acumulado a causa, que é a virtude abundante. Entre os seres sencientes, pouquíssimos praticam a ação virtuosa pura, e isso significa que as liberdades e excelências resultantes são difíceis de obter. Se considerarmos outros seres, por exemplo, os animais, podemos apreciar o quão raro é encontrar as liberdades e excelências. Portanto, agora que encontramos essas liberdades e excelências, não devemos permitir que sejam desperdiçadas, mas usá-las para praticar o Dharma puro e único.
- Morte e impermanência
Medite sobre o fato de que a vida é incerta e que há muitas circunstâncias que podem levar à morte, de modo que não podemos ter certeza de que sobreviveremos a esse dia. Portanto, devemos imediatamente colocar toda a nossa energia na (prática) do Dharma sagrado.
- As tribulações do Saṃsāra
Considere o fato de que é ensinado que ações virtuosas resultam em felicidade e prejudiciais resultam em dor, e portanto devemos evitar todas as ações prejudiciais e praticar a virtude o máximo possível.
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- A PRÁTICA PRINCIPAL – A BODHICITTA
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O treinamento da bodhicitta tem duas partes:
1) treinamento da bodhicitta última e
2) treinamento na bodhicitta relativa (ou convencional).
- A Bodhicitta Última
Essa consiste em três conjuntos de práticas: a preparação, a parte principal e a conclusão.
Como preparação, tome refúgio e gere a bodhicitta, em seguida, faça oração à deidade e ao guru e ofereça a prece em sete ramos. Sente-se ereto e inspire e expire vinte e uma vezes, sem qualquer confusão, omissão ou acréscimo. Isso o ajudará a se tornar um recipiente adequado para a concentração meditativa.
Para a parte principal, o texto-raiz diz:
“Considere todos os fenômenos como sonhos“.
Conforme isso indica, todo o ambiente e os seres dentro dele, que percebemos como objetos, são semelhantes a sonhos. Ou seja, eles aparecem como tal meramente porque nossa própria mente está iludida e não como o resultado de algo mais além da mente. Portanto, devemos pôr um fim em nossas projeções.
Podemos então nos perguntar se a mente em si é real, por isso o texto-raiz diz:
“Analise a natureza prístina (rig-pa) não surgida“.
A mente em si é vazia dos três estágios: surgir, permanecer e cessar. Ela não tem cor, nem forma e assim por diante. Ela não permanece fora ou dentro do corpo. Não tem nenhum caráter fixo e, portanto, não pode ser apreendida de forma alguma. Repouse em uma experiência além do pensamento. Ao fazer isso, se algum pensamento de antídoto — por exemplo, considerar que o corpo e a mente são vazios — surgir, então, como diz o texto-raiz:
“Permita que, mesmo o antídoto, seja liberado em sua própria natureza”.
Isso significa que examinamos a essência do antídoto em si e, quando percebemos que ele não tem uma natureza verdadeira, repousamos com essa experiência. Quanto a como descansar, o texto-raiz diz:
“Repouse na dimensão da mente fundamental (alaya), a essência.”.
Evitando toda a projeção e absorção associadas aos outros sete tipos de consciência, devemos nos estabelecer com clareza lúcida em uma experiência que está além do pensar. Não devemos nos fixar mentalmente de nenhuma maneira naquilo que não tem qualquer característica fixa.
Com relação à conclusão, o texto-raiz diz:
“Entre as sessões, seja um mágico das ilusões.”.
Em outras palavras, permitimos que a experiência adquirida durante a sessão de meditação continue na pós-meditação. Realizamos todas as atividades cotidianas comuns com o conhecimento de que tudo o que aparece — ou seja, nós mesmos e os outros, o ambiente e os seres — é apenas uma ilusão e não tem realidade verdadeira.
- A Bodhicitta Relativa
Essa prática tem duas partes: meditação e pós-meditação. Com relação à meditação, o texto-raiz diz:
“Treine nos dois – dar e receber – alternativamente“.
Isso é extremamente importante. Como Ācārya Śāntideva em seu Engajando-se nos Atos do Bodhisattva, disse:
Qualquer um deseja oferecer proteção de forma rápida tanto para si mesmo quanto para os outros
Deve praticar aquilo que é mais sagrado: |
།གང་ཞིག་བདག་དང་གཞན་རྣམས་ནི།
།མྱུར་དུ་བསྐྱབ་པར་འདོད་པ་དེས། །བདག་དང་གཞན་དུ་བརྗེ་བྱ་བ། །གསང་བའི་དམ་པ་སྤྱད་པར་བྱ། ། |
E:
Se sinceramente não se escâmbia a própria felicidade com os sofrimentos dos outros.
Não só não se alcança ao Estado Búdico almejado, Mas nem mesmo no saṃsāra encontrará felicidade.[4] |
། བདག་བདེ་གཞན་གྱི་སྡུག་བསྔལ་དག
།ཡང་དག་བརྗེ་བར་མ་བྱས་ན། །སངས་རྒྱས་ཉིད་ནི་མི་འགྲུབ་ཅིང་། །འཁོར་བ་ན་ཡང་བདེ་བ་མེད། ། |
E:
Portanto, a fim de aliviar os danos causados a mim, E a fim de apaziguar os sofrimentos dos outros, Devo me dedicar aos outros Estimando-os como a mim mesmo.[5] |
།དེ་ལྟར་བདག་གནོད་ཞི་བ་དང་། །གཞན་གྱི་སྡུག་བསྔལ་ཞི་བྱའི་ཕྱིར། བདག་ཉིད་གཞན་ལ་བཏང་བ་དང་། །གཞན་རྣམས་བདག་བཞིན་བསྲུང་བར་བྱ། ། |
Então, começamos nos concentrando claramente em nossa própria mãe desta vida. Desde o momento em que nos carregou em seu ventre, ela cuidou de nós infalivelmente, para que pudéssemos encontrar os ensinamentos de Buddha e colocá-los em prática. Portanto, sua bondade é extremamente grande. Não apenas nesta vida, mas durante todo o tempo sem início no saṃsāra, ela nos olhou incansavelmente com amor, sempre pensou em nós com afeto, protegeu-nos do mal, trouxe-nos benefícios e assegurou nosso bem-estar. Portanto, sua bondade é realmente muito grande. Considerando que aquela que fez tudo isso por nós está agora passando por várias misérias no saṃsāra, cultive intensa compaixão. Imagine que: “em troca, agora vou beneficiá-la! Eliminarei tudo o que a prejudica!”
O que é que a prejudica? É o sofrimento e sua origem. O sofrimento a prejudica diretamente, enquanto sua origem a prejudica indiretamente. Portanto, considere que você assume ambos (os sofrimentos). Assuma todo o sofrimento e sua origem que existe no ser dela para que ele surja em seu próprio coração. Cultive um forte desejo de que isso aconteça.
O que beneficiaria sua mãe? A felicidade e a virtude. Portanto, sem nenhuma preocupação egoísta, doe toda a sua felicidade e virtude para sua mãe. Considere que, como resultado, ela imediatamente acumulará todas as circunstâncias favoráveis necessárias para a prática do Dharma e será capaz de alcançar o despertar. Gere um intenso desejo de que isso ocorra.
Antes de estender a prática a todos os seres sencientes, medite da mesma forma, considerando seu pai e outros. Afinal de contas, esses seres sencientes têm sido sua mãe e seu pai ao longo de um tempo sem princípio. Eles o beneficiaram de forma imensurável e foram incrivelmente gentis. No entanto, todos aqueles que lhe demonstraram tal bondade estão agora sendo atormentados por vários sofrimentos no saṃsāra. Portanto, medite em como seria maravilhoso se eles pudessem ser liberados de sua miséria. Assuma e absorva todo o sofrimento deles e dê a eles seu próprio corpo, posses e ações virtuosas do passado, presente e futuro. Considere que, como resultado, eles serão felizes e sua virtude aumentará. Gere um desejo intenso de que isso aconteça.
Para que essa troca mental do eu e do outro possa surgir mais facilmente, o texto-raiz diz:
“Esses dois devem cavalgar na respiração.”
Ao expirar, considere que toda a sua felicidade e virtudes vão para os outros. E, ao inspirar, considere que toda a não-virtude e o sofrimento deles vêm para você.
Segundo, com relação à pós-meditação, o texto-raiz diz:
“Três objetos, três venenos e três fontes de virtude“.
Com base nos três tipos de objetos — agradáveis, desagradáveis e neutros — experimentamos as três emoções de apego desejoso, raiva e indiferença neutra. Há muitos seres que experimentam esses três venenos com base nos três tipos de objeto, portanto, aqui consideramos que absorvemos todos os seus três venenos. Como resultado, eles obtêm a virtude tríplice do não apego desejoso, da raiva e da indiferença neutra.
O texto-raiz aconselha como inspirar a atenção plena:
“Em todas as atividades, treine aplicando os preceitos“.
Isso significa que devemos recitar: “Que todas as ações negativas e o sofrimento dos seres amadureçam sobre mim! Que toda a minha felicidade e virtude amadureçam sobre os outros seres!”
E com isso, devemos sentir uma intensa determinação. Para que sejamos capazes de tomar sobre nós os sofrimentos dos outros, o texto-raiz diz:
“Comece o processo de receber consigo mesmo“.
Isso significa que, ao começarmos a assumir nosso próprio sofrimento futuro agora no presente, nos tornaremos capazes de absorver até mesmo a miséria dos outros.
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- TRANSFORMANDO A ADVERSIDADE NO CAMINHO DA ILUMINAÇÃO.
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O texto-raiz diz:
“Quando todo o mundo inteiro estiver repleto de maldade,
Transforme a adversidade no caminho da iluminação“.
Como resultado de ações prejudiciais, os recursos do meio ambiente se esgotam, os seres se tornam indisciplinados e assim por diante. Quando surgem muitas dessas formas de sofrimento, elas podem ser transformadas no caminho para a iluminação por meio da (1) intenção e da (2) ação.
- Intenção.
A intenção em si tem dois aspectos: transformar a adversidade no caminho da iluminação por meio da bodhicitta relativa e da bodhicitta última.
Transformando a adversidade no caminho da iluminação por meio da bodhicitta relativa:
No passado, quando vivenciávamos o sofrimento, não reconhecíamos a nossa (self-grasping) a uma entidade intrínseca como sendo nosso inimigo e, deixando de reconhecer a grande gentileza dos seres sencientes, nós os culpávamos. Agora, para destacar o fato de que todo sofrimento é culpa dessa fixação a uma entidade intrínseca (self-grasping), o texto-raiz diz:
“Transforme todas as culpas em uma só“.
Qualquer sofrimento que experimentemos é culpa da nossa própria fixação a uma entidade intrínseca e os outros não têm culpa disso. Na obra Engajando-se nos Atos do Bodhisattva, de Śāntideva:
Se todo o mal no mundo
E todos os medos e sofrimentos
Derivam apenas da fixação a uma entidade intrínseca,
Que necessidade há de tal demônio?[6]
Desde um tempo imprincipiável, nos aferramos a um eu inerente que não existe. E, para cuidar de tal “eu inerente”, acumulamos o karma de prejudicar os outros e assim por diante. É assim que surgem os sofrimentos do saṃsāra, bem como os dos reinos inferiores. Na obra Engajando-se nos Atos do Bodhisattva, de Śāntideva, diz:
Ó mente, você passou incontáveis eras
Em busca de seus próprios interesses,
E, no entanto, esse grande esforço
Só lhe trouxe sofrimento.[7]
Uma vez que é a fixação a uma entidade intrínseca que provoca o sofrimento, devemos ver esse tipo de fixação como um inimigo. A mente que se fixa a um eu onde este não existe, gera todo o sofrimento que experienciamos no saṃsāra ao longo do tempo sem princípio até agora. É isso que causa todas as nossas atitudes de inveja em relação aos superiores, desprezo em relação aos inferiores e rivalidade em relação aos iguais. É isso que nos impede de nos liberarmos do saṃsāra e que também provoca todo o sofrimento resultantes das ações negativas causadas pelo ser humano e não humano. Como é dito na Introdução ao Engajando-se nos Atos do Bodhisattva, de Śāntideva:
Este é aquele que, centenas de vezes
Na existência cíclica, me fez mal.
Agora, lembrando-me dessas queixas,
Eu esmagarei sua atitude egoísta.[8]
Sempre que ocorrer a fixação a entidade intrínseca, fazer uma investigação mostrará que não existe nenhuma entidade intrínseca (nem nos indivíduos e nem nos fenômenos ou coisas). Ao questionar por que nos fixamos numa entidade intrínseca, será possível abandonar a atitude de fixar naquilo que denominamos de “eu” assim que esse pensamento surgir. Em seguida, devemos nos esforçar para evitar que futuramente essa fixação nessa entidade intrínseca do “eu” e consequentemente do auto-apreço ocorra novamente. Como afirma a Introdução ao Engajando-se nos Atos do Bodhisattva:
O tempo em que você podia me prejudicar
Já passou e não está mais aqui.
Agora estou vendo você! Aonde você vai se esconder?
Eu o esmagarei em toda a sua arrogância.[9]
Portanto, uma vez que todos os danos que enfrentamos são culpa desse demônio da fixação a uma entidade intrínseca, devemos fazer o que pudermos para subjugá-lo. Como disse Shawopa: “Eu lhe solicito: Hoje, nesta vida breve, subjugue esse demônio“.
Alguém cujas intenções e ações são direcionadas para garantir seu próprio bem-estar merece o nome de “leigo”; enquanto alguém cujas intenções e ações são direcionadas para o benefício dos outros é digno do nome de praticante do Dharma. Portanto, vamos evitar e adotar de acordo com a tradição de Geshe Ben. Pois foi Geshe Ben quem disse:
“Agora manterei a lança do antídoto no portal da mente. Se ela estiver vigilante, eu também estarei vigilante. Se ela estiver relaxada, eu também relaxarei”.
Ver a fixação a uma entidade intrínseca como sendo o inimigo e evitá-lo é o que Shawopa chamou de “o Dharma de exorcizar o demônio”.[10]
Para que possamos considerar essa fixação a uma entidade intrínseca como inimigo e, em vez disso, abraçar o apreço pelos outros, o texto-raiz diz:
“Medite na grande bondade de todos“.
De modo geral, todos os seres foram nossos pais bondosos no decorrer do tempo sem princípio. Portanto, eles foram muito bondosos conosco no passado. Além disso, o alcance da iluminação insuperável também depende dos seres sencientes. Como afirma a Introdução ao Engajando-se nos Atos do Bodhisattva:
Considerando que as qualidades de um Buddha são alcançadas
Na dependência tanto dos seres ordinários quanto dos Buddhas,
Que sentido há em honrar apenas os Buddhas
Sem respeitar os seres ordinários??[11]
Para alguém que está treinando para alcançar o Estado Búdico, os Buddhas e os seres sencientes são iguais na extensão de sua bondade. Portanto, devemos cultivar intenso amor e compaixão pelos seres sencientes; devemos assumir sua negatividade e sofrimento e dar-lhes nossa felicidade e virtude. Se encontrarmos pessoas nocivas ou seres não humanos em particular, consideremos como esses prejudicadores têm sido nossa mãe repetidamente ao longo de um tempo imprincipiável. Naquela época, eles não se esquivavam das ações prejudiciais, do sofrimento e das fofocas para garantir nosso bem-estar. Isso lhes trouxe várias formas de sofrimento no saṃsāra. Agora, pelo poder da ilusão, eles não nos reconhecem, queridos parentes do passado. Na verdade, inspirados por nosso próprio mau karma, eles cometem o ato negativo de nos prejudicar, o que só os levará a mais sofrimento no futuro. Portanto, considere como eles, por muito tempo, enfrentaram sofrimento por nossa causa e como continuarão a fazê-lo no futuro, e cultive intensa compaixão por eles. Imagine que:
“No passado, eu só lhes causei danos.
Agora, vou dissipar todo o seu sofrimento e trazer-lhes benefícios!”
E medite intensamente na prática do “tonglen” — dar e receber.
Faça tudo o que puder para beneficiar diretamente os seres visíveis, tais como humanos ou cachorros etc. Mesmo que não possa fazer isso, pelo menos deseje que eles se livrem do sofrimento, conquistem a felicidade e atinjam rapidamente a iluminação. Faça essa aspiração sincera e até mesmo diga isso em voz alta. Gere a intenção de que todos os atos virtuosos que você realizar de agora em diante serão para o bem deles.
Se o prejudicador (aquele que causou dano) for um deus ou um espírito, imagine que, durante desde um tempo imprincipiável, eu consumi sua carne e sangue, portanto, agora, em troca, ofereço-lhe minha própria carne, sangue e assim por diante. Mentalmente, dissecar seu corpo na presença do prejudicador e entregá-lo, imaginando e até dizendo em voz alta:
“Coma minha carne e meus ossos! Beba meu sangue!”
Considere que a fome e a sede do prejudicador são saciadas com o consumo de sua carne. A beatitude não adulterada preenche seu corpo e mente, e isso lhes dá o domínio da bodhicitta dupla. E da mesma forma, imagine que você oferece seu corpo a todos os deuses e espíritos consumidores de carne e sangue, e com isso todos eles ficam satisfeitos, felizes e virtuosos.
Assim, como todas as falhas surgem do auto-apreço, reconheça isso como inimigo. Visto que todo benefício e felicidade vêm dos seres sencientes, veja-os como aliados próximos e faça o que puder para ajudá-los. Como disse Langri Thangpa:
“Não importa quais textos profundos do Dharma eu consulte, descubro que a mensagem é a mesma: todas as falhas são nossas e todas as qualidades pertencem aos irmãos e irmãs seres sencientes. Considerando esse ponto crucial, a única conclusão é que devemos oferecer todos os lucros e vitórias aos outros e aceitar todas as suas perdas e derrotas para nós mesmos”.
Transformando a Adversidade no Caminho da Iluminação por meio da Bodhicitta Última
O texto-raiz diz:
“Medite sobre as percepções ilusórias como sendo os quatro kāyas,
A vaziedade é a proteção intransponível”.
Sempre que experienciamos aflições mentais ou sofrimento causado por danos do ambiente externo ou dos seres que nele habitam, essas aflições e sofrimentos são percepções ilusórias de nossa própria mente. Portanto, eles não têm a menor existência verdadeira. Essas aparências relativas são comparáveis a um sonho em que somos queimados pelo fogo ou afogados na água. Seria um erro confundir o que é irreal com a realidade. Todos os fenômenos, em última análise, carecem de realidade verdadeira, portanto, examine a essência de qualquer aflição mental ou experiência de sofrimento.
– Visto que tudo isso não surge de lugar algum, em seu início, é o dharmakāya incriado.
– Aquilo que não surge não cessa, portanto, é o incessante Sambhogakāya.
– Visto que aquilo que não surge nem cessa e não permanece no intermediário, é o Nirmāṇakāya não permanecente.
– E dado que esses são indivisíveis em essência, é o Svabhāvikakāya.
Ver as percepções ilusórias como os quatro corpos búdicos com essa abordagem, é conhecido como a instrução sobre o reconhecimento dos quatro kāyas.
Qualquer coisa que nos prejudique também pode se mostra muito gentil, pois inspira nosso treinamento nos dois tipos de bodhicitta. O prejudicador enfatiza como não temos um antídoto e como não percebemos o início das aflições mentais, de modo que eles são como uma emanação do mestre ou Buddha. Se você passar por um sofrimento intenso em decorrência de uma doença grave como a lepra, imagine que:
“Se não fosse por esse sofrimento, eu estaria envolvido nos preparativos para esta vida.
Mas isso fez com que eu me lembrasse do Dharma quando não estava conseguindo fazer isso.
Portanto, deve ser a atividade do guru e das Três Jóias”.
Em suma, devemos chegar à convicção sincera de que, assim como a bodhicitta surge na dependência do guru, a bodhicitta dupla também pode se desenvolver com base nos prejudicadores e no sofrimento e, portanto, são equivalentes.
- Ação
Em seguida, o texto-raiz se refere à prática especial da acumulação e purificação que transforma a adversidade no caminho:
“A prática quádrupla é o melhor dos métodos“.
[As quatro práticas é como segue:]
- A prática de acumular méritos
Quando o sofrimento lhe sobrevier e você imaginar que ficaria muito feliz se o sofrimento desaparecesse, contemple o seguinte:
“Não querer sofrer, mas desejar ser feliz, é um sinal de que é preciso acumular as causas da felicidade”.
Portanto, devemos fazer oferendas ao guru e às Três Jóias, reverenciar o saṅgha e oferecer tormas aos espíritos elementais. Em suma, devemos colocar nossa energia em reunir as acumulações física, verbal e mental. Devemos tomar refúgio, gerar bodhicitta, fazer oferenda do maṇḍala ao guru e às Três Jóias e rogar a eles fervorosamente, sem qualquer esperança ou medo, dizendo:
“Se for melhor para mim estar doente, abençoe-me com a doença.
Se for melhor para mim ser curado,
abençoe-me com a recuperação.
Se for melhor para mim morrer, abençoe-me com a morte”.
- A prática de purificar as ações negativas
Se não quisermos sofrer, isso é um sinal de que devemos abandonar a causa do sofrimento, que são as ações negativas.
(a) Sentir arrependimento pelas ações prejudiciais que cometemos no passado é o poder do arrependimento;
(b) fazer o voto de nunca mais repeti-las, mesmo ao custo da própria vida, é o poder da abstenção;
(c) tomar refúgio e gerar bodhicitta é o poder do amparo;
(d) meditar na vaziedade, recitar dhāraṇīs e mantras especiais e assim por diante é o poder da ação antídoto.
Portanto, devemos confessar nossos erros adequadamente por meio desses quatro poderes.
- A prática de fazer oferendas às interferências prejudiciais
Ofereça tormas e faça orações sinceras, dizendo:
“Já que você apóia meu treinamento da bodhicitta, você é muito gentil.
Por favor, continue: faça com que todo o sofrimento dos seres sencientes amadureça sobre mim!”
Se você não for capaz de fazer isso, ofereça tormas, cultive o amor afável e a compaixão e ordene-as dizendo:
“Por meio de tudo o que eu fizer para ajudá-los agora e em longo prazo,
não obstruam minha prática do Dharma!”
- A prática de fazer oferendas aos protetores do Dharma
Ofereça tormas aos protetores do Dharma e peça-lhes que pacifiquem quaisquer circunstâncias que possam obstruir a prática do Dharma e que, em vez disso, criem circunstâncias favoráveis.
Para integrar as circunstâncias imediatas ao caminho, deve-se fazer o que diz o texto-raiz:
“Seja o que for que você encontre, aplique a prática“.
Caso experimente um sofrimento intenso como resultado de uma doença súbita, interferências prejudiciais, encontro com um inimigo ou algo semelhante, considere que no mundo existem inúmeros casos desse tipo de sofrimento e sinta compaixão por aqueles que são afetados. Traga todo esse sofrimento para si mesmo ou considere como esse dano auxilia seu treinamento da bodhicitta. Reflita sobre como isso é comparável à bondade do guru. Se você ver alguém em perigo, imediatamente transfira para si o sofrimento dessa pessoa. E sempre que você ou outra pessoa vivenciar uma forte aflição mental cultive o desejo sincero de transferir sobre si mesmo as aflições mentais dos outros.
Todos esses métodos de trazer a adversidade para o caminho eliminam tanto a esperança quanto o medo. No entanto, mesmo que no final cheguemos a um caminho que é completamente sem esperança e medo, desde já fazer o treinamento com uma visão de amigos e inimigos é como endireitar uma árvore torta, como diria Langri Thangpa.
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- APLICAÇÃO DA PRÁTICA DURANTE TODA A VIDA
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O texto raiz diz:
A essência da instrução, resumida,
é aplicar-se nas cinco forças.[12]
As cinco forças são as seguintes:
- A força do estímulo é criar um poderoso estímulo na mente, imaginando repetidamente:
“De agora em diante, neste mês, neste ano,
durante toda a minha vida e até que eu alcance a iluminação,
nunca me separarei dos dois tipos de bodhicitta!”
- A força da familiarização é treinar repetidamente nos dois tipos de bodhicitta.
- A força das sementes saudáveis é acumular mérito o mais que for possível para que a bodhicitta possa surgir e aumentar.
- A força da repulsa é refletir, sempre que ocorrerem pensamentos de auto-apreço.
- A força da aspiração é fazer uma aspiração após cada ação virtuosa, como, por exemplo:
“De agora em diante até o alcance da iluminação, que eu nunca me afaste do treinamento da bodhicitta dupla! Que transforme qualquer adversidade que surja e que possa torná-la como suporte para essa prática!”
Faça oferendas ao guru, às Três Jóias e aos protetores do Dharma. Ofereça torma e faça preces para que isso aconteça.
Diz-se que essas cinco forças constituem uma prática que reúne tudo em um único HUM.
Para o momento da morte
Alguém pode se perguntar sobre as instruções para o momento da morte de acordo com essa tradição, então o texto raiz diz:
“O conselho Mahāyāna para a transferência
Inclui as mesmas cinco forças, a conduta é crucial.”
Quando alguém que pratica esse ensinamento contrai uma doença que certamente será fatal, a prática das sementes saudáveis é oferecer tudo o que se possui à maior fonte de mérito possível, por exemplo, o Mestre ou as Três Jóias. Isso deve ser feito sem qualquer apego.
Em seguida, a força da aspiração é oferecer os sete ramos ao guru e às Três Joias e fazer fervorosas preces de aspiração, tais como: “Concedam suas bênçãos para que durante o bardo e em todas as minhas vidas futuras, eu possa continuar a treinar na bodhicitta dupla! Conceda suas bênçãos para que eu possa encontrar um guru que ensine essa instrução!”
A força da repulsa é refletir:
“Pensamentos de auto-apreço ou vangloria me impuseram sofrimento no passado e, a menos que me livre deles (agora),
no futuro continuarão a impedir minha felicidade. Embora eu tenha valorizado este meu corpo, ele continua sofrendo.
Se eu examinar, não há nada no corpo ou na mente que possa ser entendido como eu intrínseca”.
Com esse entendimento, a pessoa abandona a fixação a uma entidade intrínseca (tanto do indivíduo, do eu, ou da pessoa quanto dos fenômenos).
A força do estímulo é cultivar repetidamente a forte intenção de treinar a bodhicitta dupla durante o bardo.
Então, a força da familiarização é recordar as maneiras pelas quais se treinou a dupla bodhicitta no passado.
A conduta específica é deitar-se sobre o lado direito, com a mão direita apoiando a bochecha direita. Com o dedo mínimo dessa mão, feche a narina direita e respire pela esquerda. Depois, com amor afável e compaixão, conforme explicado nos preliminares, treine na prática de doar e receber ao inspirar e expirar. Depois disso, considere que tudo dentro do saṃsāra e do nirvāṇa, inclusive o nascimento e a morte, é apenas uma projeção mental, enquanto a própria mente não existe verdadeiramente de nenhuma forma. Então, repouse nesse estado de compreensão, sem se fixar em absolutamente nada. Assim, a pessoa morre ao combinar e meditar sobre os dois tipos de bodhicitta. Diz-se que, embora existam muitas instruções para o momento da morte, nenhuma é mais maravilhosa do que esta.
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- A DIMENSÃO DO TREINAMENTO DA MENTE
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O texto-raiz diz:
“Todos os ensinamentos compartilham um único propósito“.
O propósito de todos os ensinamentos dos veículos maiores e menores é eliminar a fixação a uma entidade intrínseca. Isso significa que a prática do Dharma é insignificante (não importa o quanto se faça) a menos que funcione como um antídoto para essa fixação a uma entidade intrínseca. Se o Dharma funcionar como um antídoto para essa fixação a uma entidade intrínseca, isso é um sinal de que o treinamento da mente se desenvolveu em nosso ser. Essa é a verdadeira indicação de progresso no Dharma, por isso é comparada ao compasso da balança que pesa os praticantes do Dharma. O texto-raiz diz:
“Das duas testemunhas, confie na principal“.
Outros podem dizer: “Esse irmão é um exemplo do provérbio que diz: ‘Aquele em quem o Dharma surgiu é um excelente praticante do Dharma””. Não encontrar a reprovação dos outros é, de fato, uma forma de testemunho, mas não a considere o mais importante. As pessoas comuns deste mundo não conseguem ler a mente dos outros, portanto, se contentam em vislumbrar uma fração da conduta externa. O principal testemunho, portanto, é olhar para a própria mente sem sentir-se envergonhado. Examinar-se minuciosamente com uma mente honesta e não ter motivos para sentir constrangimento é um sinal de que a mente foi treinada. Portanto, gere os antídotos e faça um esforço para não se desacreditar. O texto-raiz diz:
“Mantenha constantemente apenas a beatitude mental“.
Por meio da força de treinar bem a mente, podemos estar confiantes de que seremos capazes de integrar qualquer adversidade que possamos enfrentar no caminho do treinamento da mente. Essa é a dimensão do fato de termos treinado a mente. Portanto, sejam quais forem as circunstâncias negativas que surjam, cultive a alegria.E treine-se para que não hesite em enfrentar a adversidade dos outros também. O texto raiz diz:
“Se isso puder ser feito mesmo quando estiver distraído, você será proficiente“.
Um cavaleiro habilidoso não cairá do cavalo mesmo quando estiver distraído. Da mesma forma, sempre que surgir uma adversidade, como um mal inesperado causado pelas pessoas, se não sentirmos raiva, mas transformarmos a adversidade em um auxílio para o treinamento da mente, isso é uma dimensão de ter treinado a mente. Portanto, faça um esforço e treine para alcançar esse nível.
Essas várias dimensões de maestria são todos sinais de que a mente foi treinada, mas isso não significa que não haja necessidade de mais treinamento. Continue a se esforçar e a treinar a mente mesmo depois do surgimento desses sinais.
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- OS COMPROMISSOS DO TREINAMENTO DA MENTE
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O texto raiz diz:
“Treine constantemente em três princípios básicos“.
Os três princípios básicos são: 1) não transgredir os compromissos do treinamento da mente; 2) não ser imprudente; e 3) não cair na parcialidade.
- Evite dizer a si mesmo que é um praticante do treinamento da mente e que pode ignorar os preceitos menores. Em vez disso, com a intenção de treinar a mente, guarde todos os preceitos que você adotou, desde os votos da liberação individual até os compromissos do Vajrayāna, e não permita que eles declinem.
- Evite todas as formas de comportamento negligente com p objetivo de demonstrar aos outros que você não tem nenhum de auto-vangloriar, por exemplo, por cortar árvores majestosas ou fazer amizade com leprosos. Portanto, tenha cuidado para não entrar em conflito com o exemplo dos mestres da tradição Kadam, fundada nos ensinamentos de Geshe Dromtönpa no Monastério Radreng.
- Evite todas as formas de parcialidade, por exemplo, tolerar abusos de seres humanos, mas não de seres não humanos; respeitar os poderosos e desrespeitar os fracos; amar os amigos, mas odiar os inimigos etc. Em vez disso, aplique o treinamento de maneira unânime.
O texto-raiz diz:
“Mude sua atitude, mas permaneça natural“.
Transforme sua atitude de auto-apreço em uma atitude de apreço pelos outros, assegurando-se de que suas ações do corpo e da fala estejam em harmonia com as de nossos companheiros do Dharma. Diz-se que todas as práticas do treinamento da mente devem consistir em: “fazer um grande progresso, mas com poucas evidências externas”. Portanto, amadureça sua mente de forma imperceptível para os outros.
“Não fale sobre os pontos fracos alheios“.
Não diga coisas desagradáveis sobre os outros, seja apontando deficiências, como cegueira, ou falhas espirituais, como disciplina ética comprometida.
“Não pondere e nem opine sobre as ações alheias.”
Sempre que perceber falhas nos seres sencientes em geral ou especialmente naqueles que entraram pela porta do Dharma, atribua isso à sua própria percepção impura. Reflita que não existe nenhuma certeza[13]de que a pessoa tenha tal falha e assim, ponha fim a seus padrões críticos de pensamento.
“Treine primeiro com as emoções destrutivas mais fortes“.
Verifique qual é a emoção destrutiva mais forte em sua mente e, ao combinar todas as práticas em um antídoto para essa emoção, trate-a primeiro.
“Abandone qualquer expectativa de resultados“.
Abandone todas as preocupações de cunho egoísta, por exemplo, desejar obter riqueza e respeito nesta vida; felicidade em vidas futuras como um deus ou ser humano; ou alcançar o nirvāṇa para si mesmo etc., como resultado da prática do treinamento da mente.
“Abandonar os alimentos venenosos“.
Abandone (a todo custo) todas as atividades virtuosas que estejam contaminadas pelo desejo pelas coisas como sendo reais ou por pensamentos de auto-apreço, da mesma forma que você evitaria alimentos envenenados.
“Não seja tão leal à causa“.
Evite guardar rancor com base no mal que os outros fizerem a você e evite s recusar a deixar o rancor de lado, (ou seja, por que alguém lhe causou danos, agora você quer se vingar e guarda ressentimento, nesse caso você está sendo leal a causa – o dano feito a você – e por causa dessa lealdade, você se vinga. Então, devemos evitar isso).
“Não faça comentários maliciosos“.
Quando os outros falarem mal de você, não responda com palavras ásperas ou fale mal com a intenção de magoar. E não considere esse infortúnio como uma retribuição justa (por alguém ter falado mal de você).
“Não permaneça em uma armadilha“.
Não fique pensando no mal que os outros fizeram a você enquanto espera por uma oportunidade de vingança.
“Não conduza as coisas a uma situação dolorosa“.
Não atue de forma a causar dor na mente dos outros, como, por exemplo, expor as falhas ocultas das pessoas ou recitar “mantras de força vital” invocando seres não humanos – espíritos (para prejudicar a vida de tal pessoa).
“Não transfira o fardo do boi para a vaca“.
Evite o comportamento negativo de transferir para os outros, de forma desonesta, qualquer responsabilidade ou culpa que seja sua por direito.
“Não seja competitivo“.
Evite quaisquer pensamentos e ações voltados para a aquisição de bens, usando vários meios que são considerados de uso coletivo.
“Não atue com uma motivação disfarçada“.
Encarar a derrota dos outros por desejar a própria felicidade final ou treinar a mente para pacificar demônios, interferências prejudiciais e doenças é como praticar um ritual mundano para evitar o infortúnio. Devemos evitar essas preocupações egoístas. O treinamento da mente que envolve uma atitude parcial e que é entendido como um método benéfico para lidar com demônios e interferências prejudiciais não é diferente do ritual xamânico. Para ser qualificado como Dharma, ele deve funcionar como um antídoto para aflições mentais e pensamentos ordinários.
“Não transforme deuses em demônios“.
As pessoas mundanas, quando seus próprios deuses estão descontentes e lhes causam danos, dizem que o deus foi transformado em um demônio. Da mesma forma, se a prática do treinamento da mente levar a um aumento do orgulho e da arrogância, o Dharma se tornou não-Dharma. O treinamento da mente deve disciplinar o caráter da pessoa. Se o caráter de uma pessoa se encher de orgulho, o Dharma não conseguiu atingir seu objetivo. Isso é como realizar um ritual de proteção na porta oeste quando o demônio que está causando problemas está na porta leste. O remédio precisa ser aplicado diretamente no local da doença. Abandonemos o auto-apreço e atuemos como se fôssemos o mais humilde servidor de todos.
“Não procure a miséria dos outros para servir de muleta para sua própria felicidade“.
Evite desejar que os outros sofram como um meio para sua própria felicidade. Não imagine, por exemplo, que:
“Se meu parente próximo ou amigo morresse, eu receberia sua comida, riqueza, livros e assim por diante”;
“Se meu patrocinador adoecesse e morresse, eu teria a chance de acumular mérito”;
“Se meu colega meditador morresse, eu teria a chance de acumular mérito por mim mesmo”; e
“Se meu inimigo morresse, eu não seria mais prejudicado e teria a chance de prosperar”.
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- OS PRECEITOS DO TREINAMENTO DA MENTE
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Devemos treinar com métodos que garantam que o treinamento da mente não diminua, mas se fortaleça e melhore. O texto raiz diz:
“Faça tudo com uma única intenção“.
Realize todas as atividades, por exemplo, os yogas de comer e vestir-se etc., puramente com a intenção de beneficiar os outros.
“Combata todas as adversidades com um único remédio“.
Se, por meio da prática do treinamento da mente, sofrermos doenças, formos vítimas de demônios e interferências prejudiciais, ficarmos sujeitos a calúnias ou descobrirmos que nossas aflições mentais aumentam, de modo que não desejamos mais treinar a mente, podemos considerar quantas pessoas no mundo passam por dificuldades semelhantes. Ao sentirmos compaixão por elas, podemos aspirar a assumir todos os seus problemas sobre nós mesmos e meditar em doar e receber (tonglen).
“Duas ações: uma no início e outra no final“.
Pela manhã, gere a motivação correta imaginando: “Hoje não vou me separar da bodhicitta dupla!” Durante o dia, mantenha a presença mental e sabedoria. À noite, quando estiver se preparando para dormir, revise as atividades do dia. Se tiver agido de forma contrária à bodhicitta, exponha suas falhas, confesse-as e decida não repeti-las no futuro. Se suas ações estiveram de acordo com a bodhicitta, regozije-se e aspire a continuar em uma conduta semelhante.
“Em qualquer uma das duas situações, seja paciente.”.
Se você acumular seguidores e uma grande quantidade de pertences, não deixe que eles se tornem motivo de arrogância. Em vez disso, reconheça a ilusoriedade disso tudo e aspire para que eles se tornem um meio de beneficiar os outros. Se você se tornar tão destituído que seja (como diz o ditado) inferior a tudo, menos à água, reconheça que isso também é ilusório. Acolha todas as dificuldades dos outros sobre você e não desanime.
“Mantenha as duas, mesmo à custa de sua vida“.
A menos que mantenha os compromissos do Dharma em geral e em particular o treinamento da mente, você não experienciar felicidade nesta ou em vidas futuras. Portanto, guarde-os com se fosse mais precioso do que sua própria vida.
“Treine nas três dificuldades“.
Quando as aflições mentais surgem, no início é difícil percebê-las, no meio é difícil evitá-las e no final é difícil interromper sua continuidade. Portanto, quando surgirem pela primeira vez reconheça-as imediatamente; no meio fortaleça o antídoto de modo a abandoná-las ; e no final faça todos os esforços para garantir que não surjam novamente .
“Adquira as três causas principais“.
As provisões mais importantes para a prática do Dharma são encontrar um bom mestre, praticar autenticamente com uma mente operante e reunir as condições conducentes à prática do Dharma. Quando essas três estiverem completas, regozije-se e aspire que da mesma forma, outros seres possam conseguir ter todas essas três condições. Se as três estiverem incompletas, considere que muitas outras pessoas no mundo também não possuem esses pré-requisitos e, como resultado, são incapazes de praticar o Dharma autenticamente. Sinta compaixão por eles. Cultive a aspiração sincera de que a falta dessas condições possa amadurecer sobre você e que todos os seres possam vir a possuir essas condições.
“Cultive as três coisas que não devem deteriorar“.
Como todas as qualidades do grande veículo dependem da devoção ao guru, essa devoção não deve diminuir. O treinamento da mente é a quintessência do Dharma Mahāyāna, portanto, o entusiasmo por sua prática não deve diminuir. E a preservação dos preceitos dos veículos maiores e menores, a começar pelos menores, não deve diminuir.
“Mantenha as três coisas das quais vocês não deve se separar“.
Certifique-se de que seu corpo, fala e mente nunca se desviem da virtude.
“Aplique o treinamento de forma imparcial a todos,
É crucial fazer isso de forma profunda e abrangente“.
O treinamento da mente deve ser aplicado a todos os seres sencientes e objetos insencientes igualmente e sem parcialidade. Você deve aplicar as técnicas a tudo aquilo que surge na mente. Isso não deve ser mera conversa fiada, mas competência profunda.
“Medite constantemente sobre os pontos difíceis“.
Há pessoas pelas quais é difícil sentir amor afável e compaixão, e elas devem ser o foco especial da meditação: rivais, companheiros constantes, aqueles que nos prejudicam sem provocação e aqueles de quem não gostamos devido a razões kármicas.
“Não dependa de condições externas“.
Não dependa de reunir todas as condições certas; como comida e roupas; proteção contra forças humanas e não humanas; boa saúde e assim por diante. Se você não conseguir reunir essas condições, integre essa mesma situação ao caminho por meio dos dois tipos de bodhicitta.
“Neste momento, pratique o que é mais importante“.
Todas as formas físicas que adotamos desde tempo imprincipiável foram em vão. Agora, nesta vida, devemos realizar o que é mais importante. Porém, mais importante do que os assuntos desta vida é o Dharma. Mais importante do que o estudo e o ensinamento do Dharma é a prática. Mais importante do que outras formas de prática é o treinamento da bodhicitta. Mais importante do que o treinamento por meio das escrituras e do raciocínio é a prática assídua baseada nas instruções do guru. Mais importante do que outras formas de conduta é permanecer em seu próprio lugar e praticar. Mais importante do que evitar objetos é aplicar o antídoto. Essas são as coisas mais importantes a serem colocadas em prática.
“Não interpretar mal“.
Há seis formas de mal-entendidos que devem ser evitadas:
- Paciência errônea é tolerar quaisquer dificuldades relacionadas ao fato de derrotar os inimigos e proteger os amigos, mas não os sofrimentos relacionados à prática do Dharma.
- Intenção errônea é não sentir interesse na prática pura do Dharma, mas se interessar pelas glórias e riquezas desta vida.
- O prazer errôneo é deixar de saborear o gosto do Dharma por meio do estudo, da reflexão e da meditação, mas saborear o gosto dos prazeres mundanos.
- Compaixão errônea é deixar de cultivar a compaixão pelos malfeitores, mas cultivá-la por aqueles que agüentam as dificuldades em prol do Dharma.
- Procura errônea é deixar de encorajar seus dependentes a seguir o Dharma, mas encorajá-los a seguir os meios de aumentar as glórias e riquezas desta vida.
- Alegria errônea é deixar de cultivar a alegria pela felicidade e pelas virtudes do saṃsāra e do nirvāṇa, mas se alegrar quando os rivais sofrem.
Evitem essas seis formas errôneas de prática e levem a sério as seis formas não errônea.
“Não seja inconsistente em sua prática“.
Evite o tipo de prática esporádica que pode ocorrer quando ainda não se tem confiança no Dharma. Treine sua mente com um único objetivo e sem interrupções.
“Treine incondicionalmente com sinceridade“.
Dedique-se inteiramente ao treinamento da mente e pratique enfaticamente.
“Ganhe a liberação por meio do discernimento e análise“.
Determine qual de suas aflições mentais é a mais forte e faça dela o foco do esforço intensivo. Investigue se essa aflição surge ou não sempre que você entra em contato com o objeto tem o potencial de lhe provocar. Se tal aflição mental surgir, aplique um antídoto para superá-la e faça todo o esforço possível até que ela não surja mais.
“Não se vanglorie“.
Não se vanglorie de quão gentil você é com os outros; do tempo que você pratica o Dharma com afinco; ou de quão culto e disciplinado você é. Não pode haver vanglória ou arrogância quando se medita em apreciar os outros mais do que a si mesmo. Como disse Radrengpa: “Não tenha grandes esperanças nos seres humanos; em vez disso, suplique às deidades”.
“Não seja irritável“.
Não retribua mesmo que os outros o humilhem na frente de muitas pessoas e não fique irritado. Se nós, praticantes do Dharma, não fizermos do Dharma um antídoto para a fixação a uma entidade intrínseca, nossa paciência pode se tornar mais vulnerável do que a pele de um bebê e podemos nos sentir ainda mais irritados do que o demônio Tsang Tsen. Isso não se qualifica como sendo Dharma, portanto, assegure-se de que o Dharma funcione adequadamente como um antídoto para a nossa fixação a uma entidade intrínseca.
“Não seja temperamental“.
Não mude sua expressão de alegre para deprimida ao sofrer a menor provocação, pois isso só vai aborrecer seus companheiros.
“Não espere reconhecimento“.
Não espere palavras de agradecimento ou fama e renome por beneficiar os outros ou praticar o Dharma.
Treine corretamente dessa maneira durante toda a sua vida, cultivando a bodhicitta dupla nas sessões de meditação e nos períodos intermediários. Então, você ganhará a confiança da maestria.
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CONCLUSÃO
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Essa essência das instruções semelhante ao néctar
para transformar os cinco indícios predominantes
de degeneração no caminho do despertar,
foi transmitida por Serlingpa (habitante da Ilha Dourada).
Neste momento em que os cinco sinais de degeneração — no próprio tempo; nos seres; no tempo de vida; nas aflições mentais; e no ponto de vista ou visão — estão disseminados, há poucas circunstâncias que conduzem à felicidade e muitas que provocam sofrimento, inclusive danos causados por humanos e não humanos. Estar enredado em circunstâncias negativas como essas pode se tornar um suporte para o treinamento da mente. Então, não importa quantas circunstâncias negativas alguém possa enfrentar, a prática do treinamento da mente garantirá que a virtude só aumente.
Esse conselho conciso do Mestre de Suvarnadvīpa é como um néctar que transforma veneno em remédio. Ele é superior a qualquer outra instrução. Com o conhecimento de como treinar a mente dessa maneira, o corpo do praticante do treinamento da mente se torna “a cidade que é a fonte da felicidade”, porque produz todas as alegrias para si e para os outros no saṃsāra e no nirvāṇa. Aplicando isso a todos os seus empreendimentos (do dia a dia) e treinando bem a mente, sua mente se fundirá com o Dharma, e não demorará muito para que você atinja a meta perfeita, tanto para si mesmo quanto para os outros.
O texto raiz diz:
Quando as sementes kármicas deixadas pelos treinamentos anteriores foram
despertadas em mim,
senti grande interesse e, assim, sem levar em conta o sofrimento ou a depreciação,
procurei as instruções sobre como subjugar a fixação a uma entidade intrínseca.
Portanto, se seu morrer agora, não terei arrependimentos.
Chekawa, o senhor dos yogis, diz que ele mesmo treinou sua mente completamente e, em sua sabedoria, passou a apreciar os outros mais do que a si mesmo. Ele se liberou totalmente do emaranhado das preocupações egoístas e, assim, conquistou esse nível de confidência.
Por meio da bondade do Senhor do Dharma de nome Drakpa,
recebi muito bem o precioso tesouro desta transmissão oral,
Por meio do poder dessa revelação solicitada por discípulos fiéis,
Possam todos os seres conseguir a maestria dos dois tipos de bodhicitta!
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DEDICAÇÃO
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@Tradução para o português por Bia Bispo na ocasião dos ensinamentos de S.S. o Dalai Lama de Outubro 2023. Posso isso beneficiar incontáveis seres e por meio da prática das duas bodhicittas – o yoga que tudo abarca – possa todos os incontáveis seres velozmente alcançar a liberação da existência cíclica (samsara).
[1] Ratnāvalī II, 74–75
[2] Trocar uma cousa por outra. Fazer o escâmbio. Etimologia- do latino “escambiare”. (Se sinceramente não troca escâmbia a própria felicidade pelos sofrimentos dos outros).
[3] Bodhicaryāvatāra VIII, 120
[4] Bodhicaryāvatāra VIII, 131
[5] Bodhicaryāvatāra VIII, 136
[6] Bodhicaryāvatāra VIII, 134
[7] Bodhicaryāvatāra VIII, 155
[8] Bodhicaryāvatāra VIII, 154
[9] Bodhicaryāvatāra VIII, 169
[10] ‘gong po ‘gong rdzong gi chos.
[11] Bodhicaryāvatāra VI, 113
[12] As cinco forças são: 1. criar impressões positivas na mente (motivação) འཕེན་པའི་སྟོབས། 2. Familiarização (meditação). གོམས་པའི་སྟོབས། 3. Acumular raízes de virtudes. དཀར་པོ་ས་བོན་གྱི་སྟོབས། 4. Arrependimento (refletir na atitude egoísta e autocentrista).སྲུན་འབྱིན་པའི་སྟོབས། 5. Preces de aspiração (dedicação). སྨོན་ལམ་གྱི་སྟོབས།